Friday, December 19, 2008

Eu Hei-de Amá-lia sempre (3)

Quando Amália começa a frequentar a vida nocturna, nos anos 40, dá-se conta da existência de muitos estrangeiros, que eram refugiados de guerra. Boîtes como o Negresco, o Galo, o Caio e o Mina abriam a partir do almoço até de madrugada. Estavam sempre cheias e a clientela, sobretudo estrangeira, conhecia-se toda entre si. Portugueses assíduos eram mais a excepção do que a regra, como era o caso da família Mascarenhas, que fazia parte da alta sociedade e dos detentores de dinheiro.

O uso de calças e de biquini, o acto de fumar em público e a moda das esplanadas, que começaram a surgir na altura, foram parte das liberdades introduzidas e vividas pelas mulheres, refugiadas dos cenários de guerra, que em muito afrontaram os hábitos conservadores do Portugal ruralizado de então. Tais usos e costumes eram verdadeiros atentados à vergonha, à moral da época e às mentes mais pudicas e hipócritas.

Foi nesse contexto que Amália viveu, usando muitas vezes meias de vidro que eram verdadeiras preciosidades do Portugal de então, obtidas no mercado negro.

“Meias de vidro: lembro-me tão bem. Aliás uma coisa extraordinária era conseguir umas meias de vidro. Era assim quase como ter saído a sorte grande, ter umas meias de vidro” – Amália dixit.

E hoje? Quem se lembraria de pensar na sorte através de umas meias?

Como se reviria Amália no seu próprio filme? E nos espectáculos?

Para Amália “ir ao cinema era uma festa. As pessoas não iam ao cinema como se vai hoje. A pessoa arranjava-se para ir ao cinema. Eu nunca fui ao cabeleireiro para ir ao cinema, mas nos intervalos eu escondia-me nas toillettes das senhoras que era para não se ver que eu não tinha o cabelo arranjado. Mas deixar de ir ao cinema por não ter o cabelo arranjado, nem nada, isso não fazia. Eu queria era ver a fita, não queria fazer outra coisa. Mas realmente era uma festa.

A primeira vez que eu fui à ópera eu fui para as torrinhas porque, ainda hoje tenho muitos complexos, que não sei se são de inferioridade ou de orgulho, porque eu não queria que as pessoas dissessem que eu ia à ópera para fingir: a fadista na ópera! Para que as pessoas não dissessem fui para as torrinhas, que era onde ninguém me via e, pela primeira vez, vi o que era um espectáculo de ópera, que era um espectáculo deslumbrante. As pessoas cantavam maravilhosamente. Fiquei deslumbrada com aquilo. E era também o espectáculo do público, os camarotes e as frisas e toda a gente linda, com jóias, bem vestidas, que aquilo era um espectáculo.

E eu, como nunca na minha vida … da … da … injustiça, da … eu ficava tão contente de ver aquilo. Porque eu sempre fiz parte dos pobres. Para mim havia pobres e ricos como havia altos e baixos, como há verdes e encarnados, azuis e e brancos e não sei quê. Para mim havia ricos e pobres e estava tudo arrumado, catalogado na gaveta. Ser rico ou pobre e a minha condição era ser pobre … e eu divertia-me a ver os ricos.

E hoje a gente vai, por exemplo, ao cinema e o cinema perdeu, quanto a mim, a importância que tinha.

Eu lembro-me quando eu não tinha sapatos e sonhava com sapatos. Quando eu comprava sapatos e ia para a cama, só pensava nos sapatos novos. Onde é que eu ia com os sapatos novos? Hoje tenho sapatos novos e é uma desgraça. Não dou por eles”.

No filme Amália aparece sempre com sapatos!...

E depois? Nada! Este é apenas pequeno subsídio ao conhecimento de Amália! O filme… toda a gente viu, ou não?

É por isso que eu hei-de Amá-lia sempre! Se até há quem há-de amar uma pedra…

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